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Pelo menos cinco pessoas morreram e trinta ficaram feridas após as manifestações do último dia 14 em Beirute. Na ocasião, apoiadores dos partidos xiitas Hezbollah e Amal foram às ruas no sul da capital libanesa para reivindicar a remoção do Juiz Tarek Bitar, responsável pelas investigações acerca da explosão do porto do Líbano em agosto de 2020. Segundo manifestantes e membros dos partidos xiitas, Bitar estaria politizando as investigações e agindo de modo parcial. 

A situação atual do Líbano não poderia ser pior. Além da crise econômica, que se mantém com a hiperinflação, a imensa desvalorização da moeda e os altos índices de desemprego, o país enfrenta apagões elétricos e passa por uma imensa escassez de alimentos e medicamentos.  O Banco Mundial de Alimentos estima que mais da metade da população libanesa vive abaixo da linha da pobreza e passa fome. A moeda nacional teve uma desvalorização de mais de 90% desde 2019.

Os depoimentos e imagens veiculadas por diferentes mídias mostram um país dilacerado. Cidades escuras, prateleiras vazias, população vivendo nas ruas, filas imensas em postos de gasolina.

Afinal, o que está acontecendo no Líbano?

Para entender o cenário de caos em que o Líbano se encontra hoje, é preciso voltar a 2019, momento em que o país entrou em uma crise econômica sem precedentes. Naquele ano, a moeda libanesa já figurava entre as mais desvalorizadas do mundo, a taxa de desemprego estava em 25% e a dívida externa não parava de crescer.

Quando o governo implementou medidas de contenção de gastos em função do imenso déficit fiscal, várias empresas, temendo uma crise maior, demitiram parte dos funcionários, o que contribuiu para o aumento do desemprego. A partir desse momento o Líbano entrou em uma espiral de crises. 

A população libanesa já enfrentava sérios problemas com abastecimento de energia, alimentos e água potável. No segundo semestre de 2019, as insatisfações populares fizeram milhares de libaneses irem às ruas para protestar contra o governo, visto como culpado pela crise econômica em função dos altos níveis de corrupção. 

O mês de outubro marcou o início da crise política, que se instaurou definitivamente após o governo decidir taxar as chamadas de whatsapp. Manifestações e protestos ocorreram em mais de 70 cidades, culminando na renúncia do primeiro-ministro Saad Hariri.

Edmund Blair, em uma matéria da Reuters, afirmou que “enquanto o Estado precisava conter os gastos, as elites políticas se orgulhavam de um aumento salarial do setor público antes das eleições de 2018. No entanto, o fracasso do governo em realizar reformas fez com que os doadores estrangeiros retivessem bilhões de dólares em ajuda que haviam prometido.A faísca final para a agitação veio em outubro de 2019 com um plano para cobrar taxas de ligações do WhatsApp. Com uma grande diáspora e o regime de impostos baixos do Líbano favorecendo os ricos, aplicar uma taxa à maneira como muitos libaneses mantinham contato com parentes foi desastroso“.

É preciso lembrar que o próprio sistema político do Líbano já nasceu com seus grandes desafios. Conhecido como confessionalismo, esse sistema propõe uma divisão de poderes baseada em critérios religiosos. O presidente deve ser um cristão maronita, enquanto o chefe de estado e o presidente do parlamento devem ser muçulmanos sunitas e xiitas, respectivamente.   A ideia é garantir representatividade para a maior parte da população. Porém, o conflito de interesses entre os diferentes grupos gera uma grande imobilidade política. 

O fato é que a política libanesa tem dificuldades para evoluir porque há um equilíbrio muito delicado entre os grupos e seus poderes. Existe um medo constante de que, uma vez que esse equilíbrio seja rompido, o Líbano retorne para o caos de décadas atrás, quando o país passou por sua guerra civil (1975-1990). A população, por sua vez, vem cada vez mais reivindicando um estado laico. Nos protestos de outubro de 2019 a bandeira do estado laico foi uma das mais levantadas pelos manifestantes. 

O ano de 2020 foi marcado por dois acontecimentos que contribuíram imensamente para um aprofundamento das crises econômica e política: a pandemia do corona vírus e a explosão do Porto de Beirute. 

Se, por conta da pandemia, o desemprego cresceu em países mais estáveis econômica e politicamente, não é difícil imaginar o quão afetado foi o Líbano. Da dificuldade de internação dos doentes à carência de medicamentos e energia: o caldeirão libanês estava prestes a explodir. E, literalmente, explodiu.

No dia 4 de agosto de 2020, toneladas de nitrato de amônio que estavam armazenadas no Porto de Beirute explodiram, causando um grande número de mortes e devastando bairros por completo. A explosão, que chegou no nível 3,3 da escala Richter, foi considerada a maior explosão não-atômica da história. 

Uma nova fase

A explosão no porto, em agosto de 2020, aconteceu depois que um incêndio detonou 2.750 toneladas de nitrato de amônio, substância utilizada para fabricação de fertilizantes agrícolas e altamente explosiva quando em contato com altas temperaturas. A carga estava armazenada de forma negligente desde 2014.  

A explosão marca uma nova fase da catástrofe libanesa. Se o abastecimento de energia, alimentos e medicamentos já estava drasticamente prejudicado, a explosão do porto levou o Líbano para o abismo. O preço dos alimentos sofreu um aumento de 80% com a redução das importações. As imagens divulgadas por diferentes mídias mostram filas quilométricas que se formam em postos de gasolina. O Líbano é altamente dependente do porto para o abastecimento de praticamente todos os setores. 

Segundo uma matéria da Al Jazeera, “cerca de 300.000 pessoas ficaram desabrigadas inicialmente após a explosão do Porto de Beirute. Alguns conseguiram consertar os danos ou se mudar para um novo apartamento, enquanto muitos foram morar com parentes. O governo libanês tem contado fortemente com ONGs, sociedade civil e setor privado para mapear e responder aos danos da explosão. Cerca da metade dos 77.000 edifícios danificados já sofreram reparos”.

Acidente ou terrorismo?

De acordo com pesquisas da Human Rights Watch (HRW), vários membros do governo tinham conhecimento dos perigos de armazenar uma imensa carga de nitrato de amônio no porto de Beirute. A lista de cientes do armazenamento inclui senadores e o próprio presidente Michel Naim Aoun. Vários protestos e manifestações exigiram justamente a quebra de imunidade dos altos funcionários do governo para que possa haver uma investigação justa.  

Um ano após a explosão, em 5 de agosto deste ano, o site de notícias libanês, Beirut Observer, publicou uma matéria sugerindo que o grupo Hezbollah teve participação no evento ou que, no mínimo, está tirando algum proveito do desastre: 

Uma importante fonte francesa revelou ao Beirut Observer que o Secretário-Geral do Hezbollah, Hassan Nasrallah, estava mentindo para o povo libanês quando fez seu discurso após a explosão do Porto de Beirute em 4 de agosto de 2020. Hassan Nasrallah disse que o Hezbollah não tinha envolvimento com a explosão. A fonte acrescentou que as investigações de vários serviços de inteligência se cruzam com as informações obtidas pelos serviços de segurança franceses para confirmar o fato de que o Hezbollah está no controle total das administrações do Porto de Beirute e do Aeroporto de Beirute e que o partido tem agentes e funcionários suficientes para cobrir todas as operações de transferência de armas e substâncias ilegais e armazená-las no porto, aeroporto e áreas próximas aos dois“.

A investigação está em curso, mas provoca insatisfação entre apoiadores dos partidos xiitas Amal e Hezbollah. O primeiro juiz encarregado das investigações foi Fadi Sawwan, demitido pelo tribunal libanês após acusar dois ex- ministros do Partido Amal (xiita) pela explosão. As manifestações do último dia 14 de outubro foram organizadas justamente por membros e apoiadores xiitas do Amal e do Hezbollah, que novamente acusam um juiz de parcialidade na condução das investigações. Dessa vez, o juiz em questão é Tarek Bitar. 

Em entrevista ao Breaking Latest News, o pesquisador Michael Young afirmou que “a investigação sobre a explosão no porto de Beirute se tornou o espelho do sectarismo que assola o Líbano. O que aconteceu ontem (nas manifestações do dia 14) pode ser explicado da seguinte forma: Cristãos contra muçulmanos xiitas, em um cabo de guerra que ameaça levar o Líbano a um abismo maior do que o que já está”. O pesquisador ainda lembra que “a maioria das vítimas da explosão de 4 de agosto de 2020 eram cristãos, porque uma das partes cristãs da cidade foi destruída. Muitos sobreviventes acreditam que o Hezbollah é de alguma forma responsável pelo nitrato acumulado no porto“.  

Expandindo com a crise

Paralelamente, o Hezbollah está fazendo operações para trazer combustível para o Líbano. Cerca de 80 caminhões portando 1,1 milhão de barris de diesel entraram no país via Síria. De acordo com uma matéria da BBC, “os primeiros caminhões de combustível foram recebidos com tiros comemorativos e pessoas jogando arroz e pétalas de rosa em seu caminho. O grupo islâmico xiita, apoiado pelo Irã, distribuirá o combustível gratuitamente para hospitais do governo, lares de idosos, orfanatos e para a Cruz Vermelha Libanesa. O restante será vendido ‘abaixo do custo’ para padarias, hospitais privados e empresas que operam geradores“.

O primeiro-ministro Najib Mikati disse que não foi solicitado para permitir a entrada dos caminhões de combustível e que as cargas entraram no Líbano por uma fronteira não oficial administrada pelo Hezbollah. Ainda segundo a BBC, “os oponentes do Hezbollah disseram que a entrega de combustível tem motivação política e visa expandir a já considerável influência do grupo no Líbano“. 

Será que o Líbano ainda pode piorar?

Imagem da chamada: The Intercept

Imagem da matéria: BBC