Recomendações médicas 

Passei as duas últimas semanas separando leituras, em meio a armários e prateleiras. Abri o baú onde estavam as velhas fantasias, para pegar recortes de jornal. Imprimi dezenas de reportagens que havia salvado no Evernote. Separei livros e revistas.

Chegou a hora de organizar o que chamo de “vida regrada, vida saudável”.  Com bom senso e equilíbrio, porque o tempo muito me preocupa.

Na época de Ford, do Five dollar day, diziam que uma noite de 8 horas de sono já seria suficiente ao nosso bem-estar.  Todavia, com o passar do tempo, começaram a flexibilizar. Escutei um médico, num podcast, dizendo que não há um número ideal para todos. Eu sou um dos que precisam mais de 8 horas para ter um dia de alta produtividade.  

Após a noite de sono, resolvi, então, executar todas as outras tarefas analisando a viabilidade do projeto.

Um velho provérbio inglês me convenceu a “tomar café como rei, almoçar como um príncipe e jantar como um plebeu”. Separei uma hora para preparar o desjejum matinal, degustá-lo e, no final, lavar a louça. Aconselhado pelo metabologista, nunca me faltam as frutas, o suco de abacaxi sem açúcar, a linhaça, a quinoa e a chia. A gemada foi prescrita pelo hematologista, quando detectou a minha anemia. Mas tudo isso após uma boa colherada de óleo de fígado de bacalhau, recomendação da vovó. 

Gastei uns 30 minutos no banho, incluindo o tempo de me vestir, pentear o pouco cabelo e escolher roupas que combinassem. Um leve toque de vaidade. Peguei a chave do carro, preparei a mochila, lavei uma maçã e tirei duas barrinhas de cereais da prateleira. O lanchinho entre as refeições estava garantido. 

Elevador, manobra na garagem, fila atrás do caminhão do lixo (sempre acontece numa rua onde só passa um carro). Um deslocamento ao trabalho ouvindo música clássica no intuito de relaxar. Mais 55 minutos, incluindo o tempo do estacionamento e do elevador no trabalho. Já contabilizamos um total de 11 horas e 25 minutos. 

Adiantado 3 minutos, foi possível dar uma passada no banheiro, lavar o rosto e as mãos. Trabalhei a manhã toda e, num breve intervalo de 5 minutos, comi a maçã. “An apple a day keeps the doctor away”. 

Hora do almoço. Respeitando as determinações do dermatologista, usei 5 minutos para passar o protetor solar. Segui para o restaurante vegano localizado a duas quadras. Lá, comi pausadamente um prato de saladas com uma enorme variedade de cores, recomendação da nutricionista ortomolecular. Em cada refeição, apenas um pedaço de proteína, ora queijo, ora frango, ora peixes de águas profundas, assegurando a absorção de ômega 3. Mais 35 minutos. 

Na volta, dei uma escapulida de 5 minutos a fim de deixar um dinheiro com o bicheiro, pois sonhei com animais marinhos. Fiz uma fezinha à espera da felicidade e, na ausência da foca, decidi jogar no jacaré (foi o que deu para arrumar). 

Para não esquecer o neurologista, tirei 25 minutos de sesta dentro do carro. Ainda sobraram 10 minutos para lavar o rosto e escovar os dentes. 

5 horas de trabalho pela manhã, mais 6 horas no contraturno: vivendo para trabalhar. 11 horas de trabalho, excluindo o já contabilizado tempo de almoço. Não perca a conta!!! 

Na Hora do rush, o retorno. Aproveitando o engarrafamento, comendo as duas barrinhas de cereais, ao sabor da minha playlist favorita. Depois de 1h25 min cheguei ao portão de casa. 

Aceleradamente, segui rumo à “sala de leitura”, onde reli duas páginas do livro “Minutos de sabedoria”. Era hora da academia. O cardiologista sempre me assusta com probabilidades baseadas no meu histórico familiar, portanto meu percentual de faltas tende a zero. Corri, fortaleci os músculos e retornei ao lar. Escovei os dentes para tirar o gosto do isotônico, perfazendo 1 hora e 35 minutos de atividades ligadas às necessidades fisiológicas.

Após um banho relaxante de 20 minutos, era hora de preparar o jantar. Sem perder muito tempo, coloquei um potinho de comida light no micro-ondas e, enquanto esperava o aquecimento, fiz 25 minutos de meditação transcendental. Gastei mais 15 minutos comendo e lavando a louça. 5 minutos adicionais para os dentes, dessa vez com direito ao enxaguante bucal. 

Em 45 minutos me dediquei às tarefas que não consegui executar durante o dia. Trabalho que levamos para casa e que induz ao estresse urbano. Nem estou falando das demais tarefas domésticas, pois dona Carminha me ajuda com a faxina 3 vezes por semana. Palmas à dona Carminha!!! 

30 minutos para leitura do Evangelho, costume que desenvolvi durante a adolescência e que mamãe não me permite esquecer.  

Para responder aos e-mails, Whatsapp e Telegram, usei mais 35 minutos, com as felicitações por aniversários já inclusas. Vale lembrar que, a cada mensagem respondida, chegavam novas mensagens que exigiam novas respostas… 

Enfim, uma pausa breve para o lazer: novo capítulo da preciosa série Gambito da Rainha. 50 minutos! O psiquiatra afirmou que essas válvulas de escape são imprescindíveis. 

Chegando ao fim do dia, em 10 minutos, preparei e bebi um shake com fins de emagrecimento, influência do endócrino, insosso como a salada vegana. Em 10 minutos, mais uma vez, cuidei da arcada dentária. Depois de 5 canais e dois implantes, não descuido mais. Limpeza com escova, fita dental e solução caseira para clarear os dentes. 

Orações ao Divino e torcida por uma tranquila noite de sono. Em aproximadamente 40 minutos, adormeci com a TV ligada. Vale lembrar que, objetivando regular o sono, retirei a luz azul, tentando manter a produção de melatonina em níveis satisfatórios. O oftalmologista insistiu muito nesse procedimento. E foi um dia normal, sem grandes contratempos. Portanto, não estou acrescentando as atividades que não ocorrem diariamente, a exemplo da terapia Lacaniana, do shiatsu recomendado pelo reumatologista e da entediante reunião semanal do condomínio. Realmente poderia ser muito pior… tempo para jogar o enfadonho The Sims com minha filha mais nova ou o sacrifício hercúleo de jogar LOL com meu afilhado, que até me faz sentir saudade do The Sims.  

Fazendo a contabilidade diária concluímos que meu dia, sem contratempos, precisaria ter pelo menos 31 horas e 35 minutos. Sendo assim, para torná-lo viável, abandonei uns 3 médicos, demiti o guru tibetano que recomendou a meditação, desisti de perder dinheiro no bicheiro. Na hora da sesta, resolvi adiantar o trabalho diário das redes sociais, saí de todos os grupos de whatsapp, troquei a academia por uns pulinhos na hora do banho. Café da manhã? Dentro do carro. Almoço? No próprio escritório.  Lanche noturno? Na viagem de retorno ao lar. Pastilhas de menta que compensam o desleixo com os dentes. Troquei a leitura do Evangelho por um podcast espírita. A música clássica substituiu a TV, a fim de reduzir o ritmo e acelerar a chegada do sono. Assinei uma procuração ao meu lunático vizinho, ele adora as reuniões de condomínio. E, sem pena, arremessei pela janela o aerodinâmico Playstation.  

Enfim, troquei o “vida regrada, vida saudável” pela “vida possível, vida viável”.