O pianista da independência
Sair do Leme é uma tristeza só. Quem morou ou costuma frequentar essa península do Rio vai entender o que tô falando. É impossível não ser bairrista morando no Leme. O Leme é tipo uma mini cidade, um enclave quase bucólico no meio do caos da zona sul. A gente fala com todo mundo na rua, cumprimenta os porteiros, os jornaleiros, o árabe da esfirra, a tia do alho, as putas e os velhinhos que tomam sol na esquina. O Leme tem pessoalidade, uma dinâmica de interação social mais parecida com o subúrbio. Quando uma velhinha morre, todo mundo fica sabendo e já se prontifica pra cuidar do cãozinho órfão. Talvez nada disso seja verdade. É muito provável que essa seja apenas minha visão de mundo. Mas isso não importa. É assim que eu vejo o Leme.
Faz uns quatro ou cinco meses que mudei. Voltei pra Copacabana. Na crise dos aluguéis, pelo mesmo preço, consegui um apartamento maior, com varanda, play e vista pra mata atlântica. Da janela eu vejo micos, gambás e pássaros esquisitos. É tudo muito legal, mas a verdade é que me sinto fora de casa. Tenho uma sensação de estar sendo podado, controlado, vigiado. Qualquer conversa mais alta me faz achar que tô incomodando algum vizinho. Meu cigarro na varanda é sempre tenso: “será que a fumaça vai pros outros apartamentos?”. Racionalmente, não há sentido algum no meu medo, mas o luxo sempre vem acompanhado de uma certa opressão. Eu acho o prédio chique demais. Ninguém sai de chinelo, ninguém sai sem camisa. Os porteiros, com uma postura desnecessariamente serviçal, sempre levantam da cadeira pra abrir a porta do uber. Outro dia vi uma mulher sendo chamada de “doutora”. Eu jamais vou chamar alguém por um título. Meu vocabulário de cumprimentos serve pra todas as classes sociais e varia bem pouco, vai do “campeão” ao “chefia”, passando pelo “camarada”, “tricolor” e, no máximo, “diretor”. Ainda não cheguei no ponto que queria. Vamos lá.
Desde o primeiro dia na casa nova, fui seduzido por um pianista. Todas as tardes, lá pelas três, ele começa a tocar. É impossível não prestar atenção. Houve vezes em que desliguei a televisão pra ouvir melhor aquelas notas nítidas e reconfortantes que vinham do apartamento de cima. Nas primeiras semanas, o setlist era só música clássica. Ele tocou todas aquelas músicas que conhecemos e não sabemos de quem são. Beethoven? Mozart? Chopin? Peço desculpas pela ignorância, mas realmente não sei diferenciar. Com o tempo o repertório mudou. Houve uma semana em que ele tocou só jazz e, numa outra, só Beatles. Eu cantava desafinado e baixinho pra não atrapalhar: “Let it be, let it bíííí”. Eu me apaixonei pelo desconhecido. Cresceu em mim uma vontade sincera de conhecer quem estava me fazendo feliz sem saber.
Foi então que, sem querer, numa manhã qualquer, por uma frestinha da varanda, olhei pra cima e vi suas mãos. Não deu pra ver o rosto. Mas naquela altura do campeonato eu nem queria ver o rosto. As mãos, as pernas e a cintura já eram suficientes. Mentira! Mentira! Eu precisava de um rosto, precisava associar aquelas músicas a algum rosto. Fiz um esforço a mais, dei uma debruçada na grade e consegui. Vi uma velhinha linda, uma velhinha moderna. Cabelos tingidos com mechas louras, óculos de armação vermelha e brincos grandes de argola cor de prata. Meu pianista era uma mulher! Como não pensei que poderia ser uma mulher? Mas que machismo imbecil e ingênuo! Confesso que não refleti sobre meu preconceito. O que mais me importava é que agora eu tinha um rosto.
Nas semanas seguintes, enquanto ela tocava, eu imaginava como era seu piano, seu banco, seu sofá, seus quadros. “De que filmes ela gosta?”, eu pensei. Minha intimidade imaginária era tamanha que me vi ao lado dela vendo um filme. Nós dois, sentados no sofá, com os pés escorados sobre um puff, comendo pipoca sem sal. Eu precisava me apresentar.
Depois de alguns dias tomando coragem, decidi ir até ela. Não sabia o que falar, tampouco que desculpa inventaria pra tocar a campainha. Optei pela verdade. Quando ela abrisse a porta eu diria que era fã do piano. Simples e direto. Os passos seguintes dependeriam da resposta inicial. E foi o que fiz.
Era feriado de 7 de setembro e não trabalhei. O plano era ir até lá pela manhã, antes do momento sagrado da música da tarde, antes do almoço. Subi um lance de escada e toquei a campainha. Ela abriu e, no meu nervosismo suicida, falei implacável: “eu adoro seu piano… eu adoro quando… eu gosto quando você toca piano… Beatles, jazz, Chopin”. Ela respondeu com um sorriso: “quem toca piano é o Seu Liano do 307”. Meu mundo caiu. Foram semanas a fio imaginando o piano, o sofá, os filmes. “Quem é Seu Liano?”, pensei com coração na boca. Eu não sei bem qual foi minha reação. Acho que agradeci e, cego, subi mais um lance de escada. Toquei no 307 sem saber o que esperar. Uma moça abriu a porta. De imediato, por trás de seus ombros, avistei uma imensa bandeira do Brasil pendurada na janela. Não falei nada. Desci, deitei no sofá e, por algumas horas, contemplei o teto branco. Lá pelas três, quando a primeira nota soou, aumentei o volume da TV.
07 de setembro de 2021