Máscaras 

Dona Matilde Castanheira nunca vê o lado bom das coisas. Tipo de pessoa que se irrita profundamente quando festas acontecem e se incomoda, também, na paz que vem com o silêncio. Reclama dos pedestres quando sai de carro e reclama dos carros quando sai a pé. Passa o ano esperando o próprio aniversário, mas não suporta que perguntem sua idade, nem que lhe deem parabéns. Evitando interpretações vacilantes: Dona Matilde é um “pé no saco”. Dá azia em Sonrisal.

Quando, em março de 2020, seus vizinhos começaram a usar máscaras de proteção, seu comportamento, no mínimo egoísta, foi de esculhambar quem as pusesse no rosto, muito pior que não usar. É como buzinar no sinal fechado pedindo ao carro da frente avançar o sinal vermelho, já que o motorista resolveu respeitar um senhorzinho de 90 anos, atravessando a rua na faixa de pedestres.

Em nossos debates matinais (não fujo deles), tentei argumentar para convencê-la do contrário, por inúmeras vezes, incontáveis eu diria. Elaborava preteritamente o discurso, sustentando argumentos científicos inquestionáveis. Usei até a metáfora da roleta russa a fim de assustá-la. Não se comoveu, não queria ouvir. 

– Dona Matilde, usar máscara reduz nosso risco de contágio.

– Máscaras antipoluição já são uma realidade em vários países.

– O apicultor não trabalha sem máscara, o cirurgião também não. 

– Já viu funcionário de usina nuclear tirar a máscara porque o incomoda?

– Vamos lembrar o lado bom. Só hoje, Dona Matilde, só hoje.

Noutro dia, após uma elucubração de horas, desenvolvi uma abordagem de convencimento que, em linhas gerais, tinha a seguinte perspectiva: se ela não quer argumentos científicos, vamos improvisar.

– A máscara nos esconde de quem cobra nossas dívidas, financeiras ou, até, morais.

– A máscara nos garante caminhar pelas ruas quando desejamos a solidão temporária, permitindo fingir que não reconhecemos quem passou a um irrisório metro de distância.

– A máscara camufla um bocejo involuntário, assim como outros efeitos sonoros que poderiam nos envergonhar.

– A máscara permite uma metamorfose de comportamento que realiza desejos antigos, a exemplo de uma caminhada que procura transpor as rachaduras das calçadas. Um transtorno obsessivo compulsivo, praticamente anônimo.

– A máscara encobre nossa dentição incompleta, enquanto não temos recursos ou coragem para fazer os implantes.

– A máscara é um esconderijo à nossa timidez, pois, no outro, faz parecer que o mundo parou de nos vigiar.

E, se ainda assim ela não ceder, vou insistir no velho argumento das recompensas. A narrativa seria assim: “Se é um incômodo sair de casa com a máscara, pense no momento de tirá-la quando retornar. Sabe? Sair de casa para curtir a volta; sensação de tirar o gesso e sentir o braço decolar; arrancar os sapatos depois da noite de samba no pé; um banho refrescante após uma longa corrida e muito suor…”

Sem deixá-la raciocinar, vou desferir outros golpes contundentes, enumerando eminentes resultados positivos. “Depois da turbulência, de um extenso período de jejum, sentirei o valor do sol abrasador de verão e do frio cortante de um inverno rigoroso. Bonanças pós-tempestade.

Abraçarei os sorrisos descortinados, conseguirei discernir se eles, os sorrisos, eram maliciosos ou se, apenas, gentis. Nas lágrimas, reconhecerei a tristeza ou a felicidade incontida.

Falarei alto, com clareza, para que, enfim, os graves e agudos penetrem profundamente em meus ouvintes. Em paralelo, escutarei as vozes com leituras labiais. Sonoridade das cordas vocais no doce movimento de lábios, conjunção harmoniosa.

Contarei quantas covinhas residem no rosto de quem aprendi a amar. E verei, nas rugas, a experiência conquistada por uma jornada de desafios vencidos.

Quero notar a cor vibrante dos batons. Quero desejá-los num ritual amoroso de transferência. Porque decifrei um sentimento outrora obscuro, um estímulo para o flerte.

Pois, se damos o real valor para emoções que eram subvalorizadas, é porque sofremos na ausência delas. Não foi programado, simplesmente aconteceu. Vamos então, dona Matilde, enxergar e valorizar o lado bom das coisas”. 

As mudanças, no entanto, podem não acontecer, mesmo depois do meu esforço. Vou deixar, então, com todo o meu sarcasmo, um último recado: – Dona Matilde Castanheira, lembre no carnaval que está por vir… talvez, lá, as máscaras lhe tenham alguma utilidade.