Ocorridas no dia 18 de julho, as eleições primárias para a presidência do Chile, que definem os candidatos ao pleito que acontecerá em 21 de novembro, foram mais um atestado de perecimento de qualquer herança pinochetista.

A surpresa está na derrota do prefeito da cidade de Recoleta, o comunista Daniel Jadue, e do ex-prefeito de Las Condes, o candidato de extrema-direita Joaquín Lavín. Ambos eram os favoritos para seus respectivos espectros políticos, porém não conseguiram ficar entre os dois mais votados.

Essas posições foram de Gabriel Boric, que com 60% dos votos representará a coligação de esquerda Apruebo Dignidad, e Sebastián Sichel, com 49% dos votos, sendo, portanto, o candidato da coligação de direita Chile Vamos.

Um aspecto eleitoral a ser ressaltado é que, enquanto a esquerda mobilizou 1.750.145 eleitores, a direita conseguiu apenas que 1.343.578 fossem às urnas. Somente 21% da população compareceu para votar, porém esse número é visto com otimismo no país, que normalmente testemunha percentuais menores em votações não obrigatórias.

A diferença de mais de 400 mil eleitores é fruto da ascensão da esquerda, que ganha espaço desde os protestos de 2019, e o simultâneo esvaziamento da direita, motivado pela rejeição ao governo de situação de Sebastián Piñera e do modelo neoliberal que leva-se a cabo desde a década de 1970. Este último aspecto é visível no discurso de Boric após o resultado das eleições, quando afirmou que “Se o Chile foi o berço do neoliberalismo, também será seu túmulo”.

Desde 2019, o discurso anti-neoliberal atinge um volume cada vez mais alto, vide a insatisfação populacional frente os efeitos da privatização do sistema previdenciário, realizada durante as reformas neoliberais, a partir de 1975.

Durante a implantação da ortodoxia econômica (1975-1982), o conceito de “cidadão” no Chile foi alterado para os de beneficiário e consumidor, enquanto o Estado abdicou de seu papel de assistência, substituindo o “direito social” pela prestação de serviços. É nesse sentido que é implementado o Plan Laboral (reforma trabalhista) e a privatização dos sistemas de saúde, de educação (ensino superior) e, finalmente, de previdência.

É válido lembrar que tanto o sistema de capitalização individual e de gerenciamento pelas entidades privadas Administradoras do Fundos de Pensões (AFP), quanto o Plan Laboral, foram criadas por José Piñera, o então ministro do Estado e irmão do atual presidente.

Intelectuais como Carlos Huneeus e Manuel Garate Chateau, reconhecidos pelo estudo da experiência ditatorial chilena, afirmam a impossibilidade de efetuar essas reformas fora de um regime autoritário e repressivo, como era o de Augusto Pinochet. Ainda, argumentam que a Constituição de 1980 impôs entraves aos governos democráticos que se seguiram, para que a lógica neoliberal fosse mantida. Por isso, além da carga simbólica de substituir uma Constituição elaborada por um governo violento, repressivo e assassino, o movimento que conquistou a convocação de uma Constituinte é também justificado pela necessidade de romper com a institucionalidade de um modelo econômico que é entendido, pela maioria dos chilenos, como um fracasso. A era do “paraíso neoliberal” é substituída por sua tumba, como o próprio Boric afirma.

Para além do aspecto econômico, deve-se ressaltar que, na plataforma do candidato mais votado, está a luta feminista, a descentralização de poder, a reativação social e a proteção ambiental. Seu grande número de votos, somado à expressiva quantidade de candidatos da esquerda eleitos para participar da Assembleia Constituinte e, ainda, à eleição de Elisa Loncon, mulher, acadêmica e mapuche, para presidi-la, ilustram que o Chile parece caminhar a um destino muito diferente do que viveu em seu passado.

Resta acompanhar o pleito para presidência, em novembro deste ano, para descobrir se os sinais que o país vem demonstrando serão concretizados, ou se há ainda espaço para um governo de direita.

Foto: Gabriel Boric – Javier Torres/AFP