Presa desde março deste ano por terrorismo, sedição e conspiração, Jeanine Áñez, ex-presidenta da Bolívia, esteve sob investigação durante oito meses, que levaram a um compilado detalhado de casos de tortura, assassinatos, violência sexual e prisões arbitrárias, patrocinados por seu governo. O Ministério Público da Bolívia enviou ao Supremo Tribunal, no dia 20 de agosto, um requerimento para que a ex-presidenta seja julgada por responsabilidade em crimes que se qualificam, segundo a petição, como “genocídio, lesões graves e leves, e lesões seguidas de morte”. 

 A acusada ocupou a presidência desde novembro de 2019, quando grupos de extrema direita, aliados às Forças Armadas bolivianas, executaram um golpe de Estado que levou à renúncia do então presidente Evo Morales e, em seu lugar, Jeanine Áñez se autoproclamou presidenta interina. O partido de Evo, Movimento Socialista (MAS), além de uma série de observadores internacionais, denunciam a participação dos Estados Unidos no golpe. Entre eles, está o ex-chanceler e ex-ministro da Defesa brasileiro Celso Amorim, que declarou, em entrevista ao portal Tutaméia dias após o golpe, que “Vamos aproveitar que aqui tem jogo, do ponto de vista dos interesses externos estratégicos que são do estado profundo norte-americano, que nunca são abandonados. O estado profundo está agindo, porque é estratégico. Uma coisa que os EUA não aceitam é que a América Latina deixe de ser o seu quintal”. Em sua análise, o golpe é mais uma articulação do imperialismo norte-americano.

 Pouco depois de tornar-se mandatária, Jeanine Áñez emitiu o Decreto Supremo 4078, que incorporava aos militares a tarefa de manter a ordem pública e eximia-os de qualquer responsabilidade penal. É mediante esse decreto que as forças de segurança utilizaram-se de estratégias letais para conter protestos e manifestações, como no enfrentamento de 15 de novembro de 2019, em Sacaba, contra os cocaleiros opositores ao golpe. De acordo com o Grupo Interdisciplinar de Especialistas Independentes (GIEI), os militares se valiam de força desproporcional para conter os manifestantes durante o governo Áñez. O GIEI, junto à Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH), concluiu que houve graves violações dos direitos humanos no contexto do golpe de 2019, o que servirá ao Ministério Público para emitir o requerimento em questão. Sobre o relatório efetuado a partir dessa conclusão, Denis Racicot, ex-representante do Alto Comissionado da ONU para Direitos Humanos da Bolívia, afirmou ser “um catálogo de todas as violações”. É fundamental parar de tergiversar os direitos humanos, que têm sido manipulados por uma ótica política, devemos olhar essa situação na sua integralidade”.

O excesso de força atribuído ao momento do golpe e de sua consolidação não são denúncias recentes. Em 2020, quando completaram um ano, familiares e vítimas relataram os momentos de terror que viveram nos massacres, como caracterizam, de Senkata, Sacaba, Montero, Betanzos, Ovejuyo e El Pedregal. Este último testemunhou o primeiro grande momento de repressão, pouco antes do golpe, quando militares e movimentos civis racistas atacaram a sede do MAS, atearam fogo na wiphala, a bandeira dos povos originários, e provocaram a desordem e destruição na zona sul de La Paz. O que constatou-se é que a mídia, controlada, veiculou os ataques como ações do MAS e dos apoiadores de Evo, com o intuito de evitar movimentos contrários à renúncia forçada e gerar uma oposição ainda maior aos apoiadores do governo de situação.

 Quando o golpe já havia sido executado e a repressão era indissociável dos militares golpistas, o uso da força tornou-se mecanismo de medo. É o que constata Beltrán Paulino Condori Aruni, irmão mais novo de Plácido, que foi assassinado pelas forças policiais. Em entrevista ao Brasil de Fato, declarou que “Acho que o objetivo era intimidar as zonas periféricas, onde as pessoas são humildes, são também setores que apoiam o MAS. Quiseram intimidá-las para que não saíssem [para se manifestar após a renúncia de Morales]. ‘Se matarmos três pessoas hoje, amanhã eles não sairão’, essa foi a lógica”. Nota-se que, durante a presidência de Áñez, houve uma violência de Estado sistemática, que atacava opositores do governo, os povos originários e, principalmente, as mulheres desses povos. 

 A acusação feita pelo procurador-geral, Juan Lanchipa, ao Supremo Tribunal de Justiça (TSJ) tem como base apenas os massacres de Senkata e Sacaba, que totalizam 20 manifestantes assassinados pela força repressiva do governo Áñez. Agora, cabe ao TSJ aceitar a denúncia para que seja enviada ao Parlamento, onde a Assembleia Legislativa Plurinacional definirá se o julgamento será autorizado. Para isso, dois terços deverão votar a favor do julgamento, o que significa que o MAS precisará do apoio de outras legendas para conquistar o que familiares, vítimas e opositores ao golpe clamam: “Memória, Verdade e Justiça”, lema daqueles que defendem o enquadramento da ex-presidenta como genocida.

Foto: Brasil de Fato