A notícia

A capital do Afeganistão, Cabul, foi a última grande cidade a cair na ofensiva que começou meses atrás, mas se acelerou à medida que os radicais islâmicos do Talibã conquistaram o controle de vários territórios do país. Os acontecimentos desta semana e as cenas amplamente viralizadas nas redes sociais foram chocantes, mas não surpreendentes. 

O Talibã entrou em negociações diretas com os EUA ainda no governo Trump, em 2018 e, em fevereiro de 2020, os dois lados fecharam um acordo de paz que comprometeu os EUA a retirar suas tropas do Afeganistão. Em contrapartida, os sunitas se comprometeram a não atacar as forças americanas e a não permitir que grupos terroristas como a Al-Qaeda operassem dentro do país. 

Depois de fevereiro, no entanto, o Talibã mudou de postura. Uma série de ataques alvejaram várias cidades e bases militares. Os alvos – jornalistas, juízes, ativistas, mulheres em cargos de poder – sugeriram que os radicais não mudaram sua ideologia extremista, apenas sua estratégia.

Apesar das graves preocupações das autoridades afegãs sobre a vulnerabilidade do governo ao Talibã, o presidente dos EUA, Joe Biden, anunciou em abril de 2021 que todas as forças americanas deixariam o país em 11 de setembro – duas décadas após a derrubada do World Trade Center.

Tendo sobrevivido a uma superpotência por duas décadas de guerra, o Talibã começou a se apoderar de vastas áreas de território, antes de mais uma vez derrubar um governo em Cabul. Eles varreram o Afeganistão em apenas 10 dias, conquistando sua primeira capital de província em 6 de agosto. Em 15 de agosto, o grupo estava nos portões de Cabul.

Seu avanço rápido e implacável fez com que milhares de pessoas abandonassem suas casas, muitas chegando à capital afegã, outras indo para países vizinhos. O retorno do Talibã ao governo põe fim a 20 anos de presença de uma coalizão liderada pelos EUA no país. 


O que é o Talibã? Do nascimento aos holofotes

O Talibã, ou “estudantes” na língua pashto, surgiu no início da década de 1990 no norte do Paquistão, após a retirada das tropas soviéticas do Afeganistão.  A origem do nome faz referência fato de muitos de seus membros terem sido estudantes de madrassas (escolas religiosas) afegãs e paquistanesas onde se prega uma forma extrema do islã sunita. Inicialmente, o Talibã era apenas mais um entre centenas de grupos que lutavam na guerra civil que eclodiu após a retirada soviética.

Mohammed Omar, que se tornaria o fundador do Talibã afegão, não concordava com o fato da lei islâmica não ter sido instaurada no Afeganistão após o fim da ocupação soviética. Ele reuniu cerca de 50 estudantes que juraram livrar o Afeganistão de “senhores da guerra”, milícias e criminosos. O grupo falava em restaurar a ordem, a paz e a segurança no país assolado pela guerra. Em resumo, a promessa feita pelo Talibã – em áreas pashtun abrangendo o Paquistão e o Afeganistão – era restaurar a paz e a segurança e impor sua própria versão radical da Sharia (leis islâmicas).

Do sudoeste do Afeganistão, o Talibã rapidamente estendeu sua influência. Em setembro de 1995, eles capturaram a província de Herat, na fronteira com o Irã. Um ano depois ocuparam a capital afegã, Cabul, derrubando o regime do presidente Burhanuddin Rabbani – um dos fundadores dos mujahideen afegãos que resistiram à ocupação soviética. Em 1998, o Talibã controlava quase 90% do Afeganistão.

A população afegã, já saturada com vários anos de guerra, deu sinal verde para o Talibã quando eles apareceram pela primeira vez em cena. Sua popularidade, nesse contexto inicial, foi em grande parte devido ao seu sucesso em erradicar a corrupção, restringir a ilegalidade e tornar as estradas seguras para o comércio. 

Mas o Talibã também introduziu sua interpretação da Sharia. A partir dos dez anos, as meninas ficavam proibidas de frequentar a escola. As mulheres tinham que trajar burcas e só circulavam cobertas da cabeça aos pés. Dirigir automóveis era punido com pena de morte, e elas só podiam sair em público escoltadas por um homem que, via de regra, era da família. Televisão, música e salas de cinema foram banidos para todos os afegãos. Assassinos e adúlteros eram executados em público. Os furtos, por sua vez, eram punidos com amputação.

O regime também passou a destruir símbolos que não se enquadravam na sua visão radical, Estátuas budistas milenares foram a baixo. Praticantes de outras religiões deveriam usar símbolos com emblemas para que pudessem ser identificados em público.

A atenção do mundo foi atraída para o Talibã após os ataques de 11 de setembro de 2001 ao World Trade Center em Nova York. O grupo, que já governava o Afeganistão desde 1996, foi acusado de fornecer espaços para treinamento militar da Al-Qaeda e seu principal líder: Osama Bin Laden, responsável pelos ataques aos EUA. 

Em 7 de outubro de 2001, uma coalizão militar liderada pelos EUA lançou ataques no Afeganistão e, na primeira semana de dezembro, o regime do Talibã entrou em colapso. O então líder do grupo, Mullah Mohammad Omar, e outras figuras importantes, incluindo Bin Laden, escaparam e se refugiaram no vizinho Paquistão. 


Estrutura de poder 

Há uma clara hierarquia dentro do grupo islâmico, cujo líder supremo é Mawlawi Hibatullah  Akhundzada desde 2016. O líder supremo é autoridade máxima em todas as questões políticas, religiosas e militares, sendo apoiado por três vices e um ministro encarregados de áreas como forças armadas, serviço secreto e economia. 

O líder supremo, Akhundzada, não supervisiona uma estrutura de poder clara. O grupo não possui um conjunto público de regras para executar o trabalho administrativo do cotidiano em sua base e seus membros não possuem carteira de identidade. Akhunzada está no topo da liderança do Conselho Shura (Rahbari Shura), composto por 21 membros. Sob o Conselho Shura, mais de vinte comissões e escritórios servem como gabinetes ministeriais para lidar com questões políticas, econômicas, educacionais e com o tribunal superior de justiça.

O braço político do Talibã, que o representa internacionalmente, é sediado em Doha no Catar e é liderado pelo cofundador do grupo, o mulá Abdul Ghani Baradar. Sob liderança do mulá Abdul Hakim, foi esse subgrupo que se encarregou das negociações com os Estados Unidos no final do governo Trump. Foram eles também que, recentemente, se encontraram com o governo de Pequim. 


Âmbito de atuação e terrorismo

Diferente Estado Islâmico, que chegou a ocupar várias áreas do Iraque e da Síria, o grupo jihadista afegão não tem pretensões de crescer para além de suas fronteiras nacionais (ou tribais). Em entrevista ao site alemão Taz, Peter Neumann, especialista em terrorismo islâmico, explica que “O Talibã não é o Estado Islâmico, não tem ambições globais. Eles são uma organização islâmica violenta, mas também uma organização tribal pashtun que se limita aos lugares onde vivem os pashtuns. E isso é especialmente verdadeiro no Afeganistão e no Paquistão”. 

Quando perguntado se haveria a possibilidade do Afeganistão se tornar um refúgio para grupos terroristas internacionais como a Al-Qaeda, Neumann disse que “Não imediatamente. Os talibãs sabem que os americanos se mobilizaram em 2001 porque Osama Bin Laden estava lá. Além disso, os talibãs atualmente são tão fortes que não precisam de nenhum apoio do terrorismo internacional. É difícil dizer se continuará assim. Mas no momento prevalece uma postura mais pragmática”. 

No entanto, o professor afirma que a ascesão rápida do Talibã já gerou uma empolgação em alguns grupos terroristas como o Estado Islâmico e a Al-Qaeda. “Você já pode ver que grupos jihadistas em todo o mundo, como ISIS ou a Al-Qaeda, estão explorando essa vitória para fins de propaganda. E, claro, eles tentam criar uma atração para seus próprios projetos. Depois de muitas derrotas, finalmente há outra vitória para comemorar, e que vitória. O Talibã não apenas assumiu o poder em qualquer lugar: eles derrotaram os Estados Unidos, a potência militar mais forte do mundo. Do ponto de vista jihadista, este é o confronto final. Além disso, o 11 de setembro marcará o 20º aniversário da invasão americana. Esse simbolismo é muito forte”.


De onde vêm as receitas do Talibã? 

De acordo com um relatório confidencial da OTAN acessado pela Organização Radio Free Europe / Radio Liberty (RFERL) [ Clique para ver a matéria com o relatório ], o orçamento anual do Talibã no ano financeiro de 2019-20 foi de 1,6 bilhões de dólares, um aumento de 400% em quatro anos quando comparado com os números publicados pela Forbes em 2016.

Segundo o relatório da OTAN, as principais fontes de renda do grupo são (em dólares):

1 – Mineração: 464 milhões

2 – Drogas: 416 milhões

3 – Doações estrangeiras: 240 milhões

4 – Exportação: 240 milhões

5 – Impostos: 160 milhões (dinheiro para proteção / extorsão?)

6 – Imóveis: 80 milhões

Como destacado pela RFERL, “A chave para o aumento das receitas tem sido os lucros com a mineração, passando de US $ 35 milhões em 2016 para US $ 464 milhões em 2020, de acordo com um dos membros do Talibã entrevistados, que acrescentou que a China e os Emirados Árabes Unidos são os maiores compradores das matérias-primas. O comércio ilícito de ópio também continuou sendo uma importante fonte de receita para o Talibã. Cerca de 90 por cento da heroína do mundo vem do vale do rio Helmand, um reduto do Talibã no sul do Afeganistão. O Talibã tributa os produtores de papoula e também está envolvido no tráfico de drogas para os países vizinhos, de onde vão parar na Europa e na América do Norte”.

Publicada na sexta (20), uma reportagem do Independent (Reino Unido), vai ao encontro do que foi dito pela RFERL.  “Durante anos, o Afeganistão forneceu cerca de 84% da produção global de ópio, de acordo com o Relatório Mundial sobre Drogas da ONU 2020. Os comandantes do Talibã impuseram um imposto sobre cada estágio da produção, transporte e venda do ópio. O Talibã projetou um sistema tributário nas áreas sob seu controle, incluindo empresas, lojistas, caminhões que usam rodovias e projetos de ajuda internacional. Eles também recolhem um imposto islâmico “Ushur” de 10% e um “Zakat” de 2,5% – o imposto islâmico anual sobre a riqueza”.


Como o Talibã conseguiu derrotar tão rapidamente o exército afegão? 

Muitos analistas estão se questionando sobre como um exército construído com financiamento de quase um trilhão de dólares, ao longo de 20 anos, poderia entrar em colapso tão rapidamente. Enquanto o Talibã marchava pelo país nas últimas semanas, seus soldados  encontraram pouca ou nenhuma resistência dos militares treinados pelos EUA.

Relatórios de várias capitais provinciais disseram que os anciãos locais e chefes tribais negociaram com o Talibã, concordando em não levantar armas contra eles em troca de uma resolução pacífica. Alguns afegãos dizem que esse acordo se estendeu por todo o país.

As forças de segurança afegãs e as tropas terrestres estavam operando sem o poder aéreo que sempre foi vital para impedir os avanços do Talibã. Em algum momento os ataques aéreos de apoio pararam. Nas últimas semanas, os EUA se recusaram a fornecer a maior parte do apoio aéreo, deixando as tropas afegãs por conta própria. O fato é que, sob os cuidados dos EUA, o exército do Afeganistão tornou-se extremamente dependente das forças americanas, de modo que a retirada desse apoio foi crucial para o enfraquecimento militar afegão.

Em entrevista à  MSNBC News (EUA), James Stavridis, responsável por questões relacionadas ao Afeganistão na OTAN, afirmou que “os militares americanos cometeram um grande erro ao tentar criar um exército que reproduzisse os padrões dos EUA. Acredito que não tenhamos treinado os soldados para enfrentar esse tipo de momento, no sentido de que tentamos torná-los uma mini versão de nós mesmos”.

Ibrahim Al-Marashi, professor do Departamento de História da Universidade da Califórnia, acredita que o fracasso americano no Afeganistão tem muitas semelhanças com o que houve no Iraque. Em uma matéria da Al Jazeera, o pesquisador explica essa comparação. “Em primeiro lugar, os Estados Unidos buscaram impor a rígida e hierárquica doutrina militar americana a ambos os exércitos, sem considerar as diferenças nos contextos culturais afegão e iraquiano. Além disso, esses exércitos enfraquecidos tiveram que enfrentar o ISIS ou o Talibã – atores não-estatais violentos que possuem uma ‘asabiyya’ (solidariedade de grupo) mais forte do que eles. Por fim, havia líderes fracos em Cabul e Bagdá (péssima administração). Ao lado dos EUA, esses líderes permitiram que redes de clientelismo e corrupção criassem raízes nas forças armadas de seus países durante seus respectivos processos de reconstrução, possibilitando o sucesso eventual do ISIS no Iraque e do Talibã no Afeganistão. Ambos os desastres foram o resultado de uma invasão americana e os consequentes esforços de construção de Estado fracassados”.

Explorando o âmbito cultural, uma matéria publicada pelo Atimes na última segunda (16), afirma que a cultura local é um fator preponderante para compreender o poder do Talibã. “É impossível entender o Talibã – e acima de tudo, o universo pashtun – sem entender o pashtunwali. Assim como os conceitos de honra, hospitalidade e vingança, o conceito de liberdade implica que nenhum pashtun está inclinado a ser ordenado por uma autoridade central do estado – neste caso, Cabul. As tropas afegãs que não recebiam salário há meses foram pagas para não lutar contra eles. E o fato de não atacarem as tropas americanas desde fevereiro de 2020 lhes rendeu muito respeito extra: uma questão de honra, essencial no código pashtunwali”. 

Mais recentemente, com a certeza da desocupação americana e o rápido ganho de voz do Talibã em Moscou e Pequim, muitos soldados afegãos, com salários atrasados ou não pagos, perderam as esperanças e optaram por não lutar. Na verdade, não houve banho de sangue. O talibã avançou e ocupou a capital sem precisar atirar. O governo Biden afirmou repetidamente que o exército afegão era uma força de combate de 300 mil soldados, superando o Talibã. Mas as folhas de pagamento dos militares e policiais afegãos continham milhares de soldados fantasmas, combatentes que não existiam, mas foram listados para que os funcionários pudessem fugir com seus pagamentos.


O novo eixo do mal

No plano das relações internacionais, a saída das tropas americanas e o rápido domínio do território afegão pelo Talibã vai mudar definitivamente a geopolítica da região. De acordo com a maior parte dos pesquisadores, o Talibã encontra apoio vindo da China, Rússia, Paquistão e Irã. De acordo com uma matéria do Atimes, “a perda do Afeganistão deve ser interpretada como um reposicionamento. Ele se encaixa na nova configuração geopolítica, onde a missão principal do Pentágono não é mais a guerra ao terror, mas a tentativa de isolar a Rússia e assediar a China por todos os meios na expansão das Novas Rota da Seda. O Irã está prestes a ingressar na Organização de Cooperação de Xangai como membro pleno – outra virada de jogo. Mesmo antes de reconfigurar o Emirado Islâmico, o Talibã cultivou cuidadosamente boas relações com os principais jogadores da Eurásia – Rússia, China, Paquistão, Irã e os países da Ásia Central. Os sunitas estão sob total proteção russa. Pequim já está planejando investimentos de grande porte em terras raras no Afeganistão”.

O portal indiano The Week publicou essa semana uma matéria sobre os novos parceiros do Talibã. Especificamente sobre a Russia e a China, a reportagem afirma que “A China quer evitar a disseminação do islamismo radical em seu território, especialmente na agitada região de Xinjiang, onde encarcerou mais de um milhão de uigures (muçulmanos). Pequim precisa do apoio do Talibã para evitar uma propagação do fundamentalismo islâmico pelas fronteiras do nordeste do Afeganistão, controlando grupos como o Movimento Islâmico do Turquestão Oriental (ETIM). A Rússia também teme que seus vizinhos da Ásia Central sejam afetados por grupos islâmicos radicais. Moscou considera as repúblicas da Ásia Central como o Tajiquistão e o Turcomenistão como seu ‘ponto fraco’ e, sem a cooperação do Talibã, terá cada vez mais dificuldade em manter os elementos radicais afastados. Mesmo dentro da Rússia, a militância adormecida em províncias como a Chechênia e o Daguestão poderia ser reativada com o apoio do Talibã”. 


Turquia, refugiados e crescimento da extrema direita europeia

A Turquia é sempre mencionada quando o assunto é a “crise migratória europeia”. De fato, sua posição geográfica confere ao país um papel importante na rota migratória de grupos que atravessam as fronteiras através da Síria, Iraque, Irã, Armênia e Geórgia. Uma rápida olhada no mapa é suficiente para entender o porquê da Turquia ser chamada de “porteira da Europa”. Os refugiados oriundos do Afeganistão costumam entrar na Turquia pela fronteira com o Irã. Hoje já existem cerca de 600.000 afegãos na Turquia, refugiados que chegaram ao país nessas últimas duas décadas de ocupação americana.

Nesta última semana, fotos e vídeos publicados nas redes sociais mostraram centenas de afegãos, a maioria do sexo masculino, cruzando essa difícil fronteira com a Turquia. A província de Van, no extremo leste do país, faz fronteira com o norte do Irã e serve como um ponto de referência no caminho para os afegãos que desejam se estabelecer na Turquia ou chegar à Europa. Segundo a Al Jazeera, a chegada de imigrantes afegãos na fronteira oriental da Turquia se tornou um tópico político forte no país. Sobre o líder turco, Erdogan, o portal Monitor do Oriente publicou que “Após reunir-se com seu gabinete de governo, Erdogan reiterou que a Europa precisa assumir a responsabilidade pelo êxodo afegão e confirmou que pretende reforçar as fronteiras turco-iranianas — rota predominante para os refugiados. O presidente turco sugeriu ainda que seu regime pode engajar-se em diálogo direto com o novo governo do Talibã, a fim de debater agendas comuns”. Erdogan também alertou que seu país “não servirá como depósito de imigrantes da europa”. 

Alguns países como Reino Unido e Canadá já se posicionaram e divulgaram os números de imigrantes afegãos que podem receber (20 mil cada um). A Suíça, por sua vez, disse que não receberá grandes volumes de imigrantes e analisará a questão dos refugiados caso a caso. Já a Áustria, sob comando do conservador Sebastian Kurz, disse ser a favor de combater o fluxo de refugiados com ajuda local e centros de deportação.

O fato é que o crescimento da extrema direita europeia tende a ganhar força com a questão migratória. A bandeira contra imigração é sempre levantada pelos nacionalistas xenófobos. Uma matéria publicada pela alemã Deutsche Welle no último dia 17, vê a questão migratória como munição para a extrema direita do país. “A crise no Afeganistão pode dar munição ao partido nacionalista Alternativa para a Alemanha (AfD), a poucas semanas das eleições parlamentares alemãs. Estagnada há meses na casa dos 10% nas pesquisas nacionais de intenção de voto, abalada por brigas internas e resultados fracos nas últimas eleições regionais, a sigla pode tentar recobrar popularidade explorando eleitoralmente a catástrofe humanitária que se anuncia no país asiático. A perspectiva de um aumento de refugiados saídos do Afeganistão pode dar ao AfD a chance de lucrar nas urnas com seu mote de campanha preferido: o combate à imigração. A própria chanceler alemã, Angela Merkel, alertou para uma possível alta de pedidos de refúgio após a tomada de Cabul”.

O primeiro-ministro italiano, Mario Draghi, disse na segunda-feira que “a Itália está comprometida em proteger os cidadãos afegãos que colaboraram com nossa missão. O país está trabalhando com parceiros europeus para uma solução que proteja os direitos humanos, especialmente aqueles de mulheres”. No entanto, o líder da extrema direita, Matteo Salvini, conhecido por suas posturas anti migratórias, tuitou: “Em Cabul, após a fuga covarde dos países ocidentais, a bandeira dos assassinos islâmicos e assassinos do Talibã retornou. Terrorismo, violência, medo e imigração ilegal estão no horizonte.”

Segundo a Agência das Nações Unidas para os Refugiados (ACNUR) estima-se que 400 mil afegãos foram obrigados a abandonar suas casas desde o início do ano. Em entrevista para a CNN americana, Caroline Van Buren, representante da ACNUR no Afeganistão, disse que entre 20 e 30 mil pessoas deixam o país semanalmente. 


Mulheres e direitos humanos

Nos depoimentos dados pelo Talibã na última terça feira, o porta-voz do grupo, Zabihullah Mujahid, afirmou que “nenhum preconceito contra as mulheres será permitido, mas os valores islâmicos são a nossa estrutura”. O grande problema, no entanto, é a interpretação que o Talibã faz das escrituras sagradas. Os valores islâmicos podem ser impostos de inúmeras maneiras, mas sempre dependendo da interpretação. Para vários especialistas, essa aparição do Talibã na mídia internacional serviu muito mais como propaganda. Nesse primeiro momento, é preciso mostrar ao mundo essa nova roupagem do grupo, isto é, passar uma mensagem de que o novo Talibã não é mais aquele grupo extremista que governou o Afeganistão entre 1996 e 2001. Há, porém, um grande ceticismo com relação a essa postura. Em menos de uma semana, várias mulheres já foram afastadas de cargos públicos. 

Publicada no mesmo dia em que o Talibã veio a público pela primeira vez, uma reportagem do New York Times afirma que “as mulheres em algumas províncias foram orientadas a não sair de casa sem que um parente do sexo masculino as acompanhasse. Em Herat, no oeste do Afeganistão, homens armados do Talibã guardavam os portões da universidade e impediam que estudantes e instrutoras entrassem no campus. Na cidade de Kandahar, no sul, as clínicas de saúde para mulheres foram fechadas, disse um residente. Em alguns distritos, as escolas femininas foram fechadas desde que o Talibã assumiu o controle delas em novembro. As mulheres disseram que estavam começando a usar a burca da cabeça aos pés na rua, em parte por medo e em parte em antecipação às restrições ordenadas pelo Talibã. Na Universidade de Cabul, na capital, as alunas foram informadas de que não podiam sair de seus dormitórios a menos que acompanhadas por um tutor do sexo masculino. Duas alunas disseram que foram efetivamente presas porque não tinham parentes do sexo masculino na cidade”.

O já mencionado Professor Peter Neumann segue na mesma linha de raciocínio em sua entrevista para o alemão Taz. “O Talibã se tornou mais pragmático, mas a ideologia não mudou. Isso inclui o fato de que as mulheres não têm lugar nos espaços públicos. Eles irão reorganizar o sistema de acordo com seu pragmatismo, mesmo que as mulheres não sejam oficialmente proibidas de trabalhar. Não há perspectiva para mulheres com orientação ocidental. Você não deve ter ilusões sobre isso. Mas o Talibã também entendeu que precisa agir de maneira diferente do que agia na década de 1990 – portanto, as mulheres não devem ser apedrejadas imediatamente, por mais cínico que isso pareça. São sinais não só para o Ocidente, mas sobretudo para os novos amigos como a China e o Irã, de quem muito se espera”. Precisamos aguardar as próximas semanas. 


CRONOLOGIA: Como foi a atuação da OTAN desde 1979

Fonte: Deutsche Welle

1979-89: As forças soviéticas ocupadoras combatem militantes da resistência unidos em aliança informal, que contam com apoio dos EUA. Após a retirada soviética, as diferentes facções rebeldes têm visões conflitantes para o futuro do Afeganistão, resultando em guerra civil.

1989-1996: A brutal disputa entre os senhores de guerra afegãos destrói a capital, Cabul. O fundamentalista Talibã emerge como facção mais poderosa.

1996: O ultraconservador Talibã (na língua pachto, “estudantes”, em referência aos alunos das escolas religiosas islâmicas) assume o poder.

1996: O bilionário saudita Osama bin Laden transfere-se do Sudão para o Afeganistão.

11/09/2001: Bin Laden e sua rede terrorista Al Qaeda atacam o World Trade Center, em Nova York, e o Pentágono, em Washington, usando aeronaves comerciais. O saldo é de 2.997 mortos.

12/09/2001: Pela primeira vez em sua história, a Otan invoca o Artigo 5º, cláusula de defesa mútua segundo a qual o ataque a um aliado é considerado contra toda a Aliança.

07/10/2001: O então presidente dos EUA, George W. Bush, anuncia a ofensiva contra o Afeganistão sob liderança americana. A ação resultou na derrubada do Talibã e a posse de Hamid Karzai como presidente afegão.

2003: Tropas americanas marcham sobre o Iraque, iniciando outra longa mobilização militar no país, paralela à do Afeganistão.

2006: Osama bin Laden se transfere para Abottobad, Paquistão, segundo dados do serviço secreto dos EUA.

02/05/2011: O então presidente americano, Barack Obama, anuncia a morte de Bin Laden, após uma batida das forças especiais americanas Seal Team 6 em Abottobad, bem próximo da Academia Militar do Paquistão Kakul.

07/2018: Sob o presidente Donald Trump, os EUA entram em negociação com o Talibã, sem envolver o governo afegão eleito ou os parceiros da Otan.

02/2020: Ambas as partes assinam o Acordo de Doha. O Talibã se declara vencedor da guerra contra a Otan. As tropas internacionais concordam em se retirar do Afeganistão.

09/2020: Conversações de paz internas do Afeganistão se iniciam na capital do Catar, Doha, mas logo se estagnam.

14/04/2021: O presidente americano, Joe Biden, comunica à população que a guerra mais longa do país terá fim, com as tropas dos EUA e da Otan se retirando até 11 de setembro, o 20º aniversário dos ataques em Nova York.

02/07/2021: Tropas americanas partem da base aérea de Bagram, ponto focal da guerra, e entregam a base ao governo afegão.

08/2021: A ofensiva talibã começa a tomar distritos e capitais provinciais, enquanto as tropas governamentais se esfacelam, e EUA e Otan prosseguem com sua retirada.

14/08/2021: Embaixada americana começa a retirar seu pessoal do Afeganistão de helicóptero.

15/08/2021: Com todas as principais cidades do Afeganistão já sob seu controle, talibãs adentram a capital, Cabul, dissolvendo o governo e assumindo de fato o controle do país. Milhares de cidadãos correram em pânico para o aeroporto da capital, na tentativa de escapar da ameaça de caos e violência.

Foto da Matéria: AFP/Getty Images